Nós sabemos que quando andamos com um smartphone com GPS estamos na prática carregando um localizador, e que, usando serviços de mensagem “na nuvem”, passamos cartas abertas por um carteiro que não conhecemos. Volta e meia algum escândalo sobre privacidade aparece, ora mostrando que o Google está gravando as senhas de Wi-Fi, ou que a Apple sabe onde você anda ou que a agência de inteligência americana tem escutas eletrônicas em todas as pessoas da Terra. Costumamos ficar bravos por umas semanas e voltamos à nossa vida normal. Porque, até agora, nunca vimos as consequências dessas violações de privacidade, e o fato de algumas grandes corporações terem tantas informações pessoais nossas parece ter virado norma. Continua a ser uma questão grave, é claro, mas até agora a maior consequência disso tudo sobre a população foi receber anúncios cada vez mais personalizados.
A Uber nos lembrou que isso pode mudar a qualquer momento. A empresa de “motorista de aluguel”, vale lembrar, é das queridinhas do Vale do Silício, por suas várias ideias bastante inovadoras (falei dela por aqui
duas vezes recentemente). Como, em pouco tempo, ela está na prática destruindo o bilionário negócio do táxi nos EUA e no mundo, oferecendo um serviço mais cômodo e “seguro”, a empresa é avaliada em pelo menos 17 bilhões de dólares, com cinco anos de vida.
Mas ela tem um grande problema: a falta de noção (poderíamos dizer ética) de boa parte dos seus executivos. Há diversos exemplos disso, mas o mais assustador é justamente em relação ao pouco apreço à privacidade. Como outras empresas de tecnologia, a Uber tem acesso às informações pessoais dos seus usuários: quando você pega um carro através do app, eles sabem quem é você, onde você estava e para onde foi, a que horas. Ou, se está em um carro da companhia, onde exatamente você está. Mas há uma diferença importante: quem são “eles”.
Esta semana, um dos executivos mostrou a uma repórter do Buzzfeed que poderia acompanhar, pelo seu smartphone, onde ela estava. Depois, sem autorização, enviou por e-mail as informações de todas as viagens da jornalista. O pior: ele não via nada de errado nisso. Depois da reportagem,
outras fontesconfirmaram a existência de um “God View” (visão de Deus) para alguns funcionários da Uber. Na prática, algumas (aparentemente muitas) pessoas da firma têm acesso a informações detalhadas tanto de motoristas quanto de usuários.
Isso é
bastante grave. Em empresas razoavelmente sérias, como o Google ou a Apple, quando falamos “eles”, estamos falando de robôs, não pessoas. Só os
algoritmos têm acesso a essas informações em tempo real, e elas só servem para melhorar o serviço ou prover mais anúncios. Nunca ouvimos falar de qualquer funcionário dessas empresas conseguindo ou mostrando informações individuais de qualquer pessoa (imagina se uma pessoa, qualquer pessoa, tivesse acesso a todo o seu histórico de e-mail?). Assim como é impensável para um executivo de uma empresa de cartão de crédito, por exemplo, poder saber em um clique o que uma pessoa importante está comprando. Justamente por ser algo insano, as empresas estão fugindo da fama de espiãs: a Apple já disse que é impossível ela própria acessar, por exemplo, o conteúdo das mensagens do iMessage, graças à criptografia em várias partes do processo, e o WhatsApp
busca algo semelhante na atualização do app para Android.
O fato de
pessoas terem esse nível de informação facilmente é assustador. Em sua defesa, a Uber disse, em um
post no blog que “só usa essas informações para ‘questões de negócios legítimas’”, o que gerou ainda mais confusão porque, afinal, o que é uma “questão de negócios?”. Depende de quão éticos são os seus executivos, e parece que ética é uma qualidade que falta por lá.
Na segunda-feira, Ben Smith, do Buzzfeed,
revelou que durante um jantar em Nova York, Emil Michael, vice-presidente de negócios, disse que poderia gastar até 1 milhão de dólares para descobrir todos os podres de jornalistas que são excessivamente críticos à empresa, e jogá-los na lama. “Nós poderíamos olhar as vidas pessoais, as suas famílias”, ameaçou Michael, citando até um alvo em potencial: Sarah Lacy, do site Pando.com. O executivo de qualquer empresa falando isso já seria incrivelmente antiético. Mas o pior é que estamos falando da mesma empresa que tem informações sobre para onde as pessoas vão – jornalistas de grandes cidades americanas são alguns dos principais clientes da Uber. Então a ideia de que o que eles sabem pode ser usado contra você – se você, no caso, for alguém crítico à empresa – é deveras grave.
Sarah atraiu a ira dos executivos da Uber porque disse, há alguns meses, que
não aguentava mais a postura antiética e especialmente machista da empresa. Um exemplo bem recente que a incomodou: a Uber de Lyon, na França,
fez uma promoção (rapidamente retirada do site depois da revolta) em que os clientes poderiam “dar a sorte” e ter como motoristas modelos com muito pouca roupa. Isso poderia ser só tosco, mas o problema extra é que a empresa estava sofrendo críticas por causa de vários casos em que motoristas do Uber foram acusados ou presos por assédio sexual. Como por exemplo uma situação em que um deles
levou uma passageira bêbada, desacordada, ao motel. Jornalistas mulheres
colecionam histórias de abusos semelhantes, que são possíveis em parte porque o motorista sabe o nome completo da passageira, perfil nas redes sociais e telefone.
As declarações do CEO da empresa, Travis Kalanack (de apenas 38 anos) não ajudam a tirar essa aura de machismo. Ele aparece em entrevistas
dizendo que agora pega geral por causa da Uber (diz que tem o apelido de
Boober, uma piada com peitos e o nome da empresa) e reagiu às reclamações que a empresa faz pouco caso das reclamações de abuso sexual falando que os seus carros são mais seguros que os táxis, já que checa os antecedentes criminais dos motoristas (apesar de isso
ser falho).
O fato é que Sarah Lacy, cujo blog é bastante lido por investidores do Vale do Silício, disse que iria desinstalar o Uber do celular, depois de cansar de postar histórias de políticas questionáveis da empresa. Algumas, é importante salientar, de fato exageradas. Seja como for, o excesso de críticas foi um dos motivos da “revolta” do executivo que, vamos combinar, passou demais dos limites. Emil Michael pediu desculpas e isso parece que foi suficiente: ele
será mantido no cargo.
Ou seja: o comportamento absurdo dele não aprece tão condenável. Porque os problemas da empresa (éticos, não operacionais, já que ela dá muito lucro) vão muito além do machismo. Há uma série de pequenos escândalos envolvendo a Uber, como as táticas que a empresa usa para sabotar a concorrência, como o Lyft. o Verge descobriu que eles encorajam pessoas a
chamarem e cancelar corridas nos carros adversários, aumentando o custo e fazendo os seus motoristas ficarem irritados. Além disso, eles lutam
contra uma lei em Nova York que quer promover mais táxis para cadeirantes (a taxa encareceria o serviço, eles dizem). Pra piorar, motoristas reclamam que recebe mal, como
ficou claro em um protesto durante a semana em Washington. E a lista de problemas segue.
Todos esses desvios começam a incomodar mais do que jornalistas “críticos”. O senador americano Al Franken
enviou uma carta ontem à Uber, pedindo que dê explicações aos cidadãos americanos sobre sua política de privacidade. Entre outras coisas, Franken reclama que as informações dos usuários permanecem com o serviço mesmo quando eles decidem apagá-lo.
Tudo isto posto, o serviço do Uber é inovador, funciona melhor que a concorrência e, como tem entre os seus financiadores do Google Ventures ao Goldman & Sachs, possui estofo para continuar investindo agressivamente em novos mercados, como o Brasil. Mas será que empresas como ela não deveriam sofrer mais pela atitude de seus executivos? Será que a “cultura” da firma, irresponsável, vai matá-la com o tempo?
Analistas de Wall Street
acreditam que a Uber tem salvação, ela só precisa “crescer”, virar adulta rápido. Ontem mesmo
eles anunciaram a contratação de um time que irá revisar toda a política de privacidade, para aprimorá-la. Já não era sem tempo.
Sei que enquanto eles não derem provas que a mudança na cultura é completa, e não só no discurso, o app deles ficará ausente do meu smartphone.