A ideia, apesar de inovadora, traduz uma espécie de regresso aos clássicos. Já na Antiguidade, os cidadãos de Atenas eram recrutados para exercerem os seus deveres políticos.
Manuel Arriaga conta como o processo pode ser transposto para os dias de hoje através de um novo conceito a "deliberação cívica".
Após seis anos nos EUA, regressou no meio da crise que fustigou não só Portugal, como os outros países do Sul da Europa. Se sempre se interessara por política, lançou-se então aos manuais de Ciência Política, e recolheu toda a informação que pôde sobre experiências já feitas para aumentar a participação dos cidadãos. De toda essa procura nasceu Reinventar a Democracia, que chegou dia 5 às bancas, editado pela Manuscrito, uma nova chancela da Presença.
O livro parte do pressuposto de que o problema atual das democracias não pode só resolver-se castigando os partidos em épocas eleitorais, escolhendo outros: "Não se trata apenas de um problema de casting.
Se a peça é má, substituir os atores não a tornará melhor".
Manuel Arriaga viu com simpatia aparecerem movimentos como os Indignados, em Espanha, ou Occupy Wall Street, nos EUA. Achou-os muito mobilizadores mas, com exceção do Podemos, recém-criado em Espanha, "não parecem ter, até agora, deixado uma marca duradoura". Esses movimentos de protesto, explica, têm habitualmente como lideres as "vozes mais radicais " que surgem entre eles, mas acabam por esfumar-se, quando não conseguem articular uma lista de exigências concretas.
"Deliberação cívica"
De tudo o que leu interessou-o particularmente a chamada "deliberação cívica" um painel de cidadãos que não são escolhidos, mas sim sorteados aleatoriamente entre os eleitores, à semelhança do que sucede nos julgamentos com jurados. Só que, neste caso, os cidadãos são convocados para tomar determinada decisão política.
Mais a mais, a "deliberação cívica" já não é uma ideia abstrata. Foi testada, por exemplo, na Columbia Britânica (Canadá), em 2004, quando 160 eleitores foram recrutados pelo Governo provincial para uma "assembleia de cidadãos", destinada a fazer a reforma do sistema eleitoral. Outro exemplo foi o da legislação introduzida em 2010 no estado norte-americano do Oregon.
Antes dos referendos, uma Assembleia de Cidadãos (Citizens' Initiative Review), passa a ser convocada para estudar e emitir uma declaração pública fundamentada sobre os assuntos que os eleitores irão depois referendar. Em ambos os casos, o teste deu positivo.
"Pessoas erradas" na política
"Vivemos numa suposta democracia representativa ", esta é a base do diagnóstico a que chegou Arriaga, quando refletiu sobre os males da sociedade atual. Ou, dito de outra forma, um pouco mais crua: "Aqueles que nos governam não nos representam ".
As peças que vai juntando para aquela conclusão são-nos demasiado familiares.
Como a sensação de impotência dos cidadãos. "Pode irritar-nos ver mais uma decisão do governo a favorecer um grande grupo económico à custa do interesse público: ou mais um político a comprar votos com pontes caras pelas quais as gerações futuras terão de pagar". Lemos as notícias, mas o que poderemos fazer? Arriaga descreve ainda outro mal que conhecemos bem e a que os cientistas políticos chamam o fenómeno da "porta giratória": "Os governantes sabem que, quando abandonarem os seus cargos políticos, muito provavelmente lhes serão oferecidas posições lucrativas (por exemplo, como consultores ou membros do conselho de administração) nas empresas que regulem com 'gentileza'." Sabendo-se que as regras são estas, a política acaba por "atrair as pessoas erradas", explica o livro. "Mesmo que, em algum momento do séc. XX, tenha existido, em algumas partes do mundo, uma verdadeira cultura de serviço público, tudo sugere que essa cultura já está praticamente extinta".
Pelo contrário, como explicam os psicólogos sociais, quando um indivíduo se sente com poder, é menos capaz de empatia com outras pessoas. "Os políticos têm maior probabilidade de se identificarem com outras elites da nossa sociedade do que com os cidadãos em geral."
Poder aos cidadãos
Foi para combater estas distorções que Arriaga se interessou pelas experiências de "deliberação cívica". Se os partidos são formados, pelos menos em teoria, para representar classes sociais, um conceito não mencionado no livro, ou determinados interesses específicos (como os reformados), o autor acredita antes nestes painéis recrutados aleatoriamente, por representarem um "corte transversal" da sociedade.
Admite que possa "chocar" a ideia de entregar as decisões a cidadãos comuns.
É que vivemos "divididos entre dois fantasmas " ou elegemos uma elite que toma as decisões por nós, ou as entregamos a massas desinformadas.
Mas nenhuma das alternativas é necessariamente verdadeira. Primeiro, porque "sobrestimamos os conhecimentos" dos políticos. Por outro lado, os estudos feitos sobre "deliberações cívicas", como o do académico australiano John Dryzek, mostram que a primeira lição a tirar daquelas experiências é a "competência dos cidadãos ". Até porque, para tomarem as suas decisões, podem pedir os especialistas que quiserem ouvir sobre o assunto.
Em que casos funcionam estes painéis? Podem ser formados apenas para resolver assuntos específicos. Mas Arriaga pensa que deveriam funcionar em permanência, como uma segunda câmara acrescentada ao parlamento e que poderia pronunciar--se sobre as decisões tomadas pelo deputados eleitos. A única condição seria que, neste caso, teriam de ser recrutados só para um mandato, não renovável.
O autor fala ainda de outras possibilidades de participação dos cidadãos. Por exemplo, a criação do "voto preferencial".
Hoje os eleitores tendem a optar pelo voto útil, escolhendo não o partido com que mais se identificam, mas o que acham com mais possibilidades de derrotar quem absolutamente não querem no poder. Com o "voto preferencial" poderiam votar em mais do que uma força política, indicando a sua ordem de preferência.
Mas Arriaga passou os últimos dois meses mais uma vez absorvida pela "deliberação cívica". Anda a filmar depoimentos de pessoas que participaram nas experiências efetuadas, fosse no Canadá ou no Oregon, para ouvir desde um carteiro a um banqueiro.
"Quero mostrar que isto existe. E que pode funcionar."
Do livro ao filme
Formado em economia, Manuel Arriaga, 34 anos, é doutorado em gestão pela New York University (NYU). Hoje divide-se entre Lisboa, Cambridge e Nova Iorque, dando aulas de gestão, análise de dados e inovação tecnológica. E apesar do seu interesse por política, tem-se mantido relativamente à distância. Só chegou a ir a algumas reuniões do Bloco de Esquerda, na altura em Miguel Portas foi candidato a eurodeputado.
Reinventar a democracia é a versão portuguesa de Rebooting democracy, lançado no Reino Unido há um ano, quando o autor criou também um site na Internet com o mesmo nome, para estimular o debate. Mas o livro, que Arriaga diz ter sido um best-seller na Amazon.UK, na secção sobre democracia, tornou-se um "hit", sobretudo depois do vídeo colocado no YouTube pelo ator e apresentador de TV Russel Brand, onde lê excertos do livro, que recomenda. Quanto ao documentário que Arriaga anda efetuar sobre o mesmo tema (ver texto) ainda não tem titulo, a não ser um provisório, qualquer coisa como Democracy Boulevard.