Pequim conecta 66 países em três continentes com o canteiro de obras global. O Brasil de Temer despreza os investimentos
Na reunião de cúpula em Pequim, Xi Jinping, o anfitrião, Vladimir Putin, presidente de vários países e um funcionário brasileiro do 3º escalão
O Deutsche Bank, maior banco da Alemanha, anunciou em maio sua participação, com 3 bilhões de dólares, no financiamento do projeto chinês das novas Rotas da Seda, de conexão com países da Ásia, África e Europa por ferrovias e estradas, ao Norte, e por mar, ao Sul.
A decisão, que deverá ser acompanhada de iniciativas semelhantes de várias instituições financeiras, é uma resposta positiva ao chamamento do presidente Xi Jinping de unir aquele que é considerado o maior programa de infraestrutura do mundo ao plano europeu de investimento, conhecido como Plano Juncker. Além de vias de transporte, serão construídos portos, aeroportos, barragens, dutos de petróleo e gás, obras para geração e distribuição de eletricidade e telecomunicações, sistemas de água e esgoto e habitações.
A união dos projetos chinês e europeu de investimentos significa a ocupação de parte do espaço deixado com o abandono, pelos Estados Unidos, por iniciativa de Donald Trump, dos tratados Transatlântico e Transpacífico, propostos pelo ex-presidente Barack Obama para barrar a influência econômica do país oriental no mundo.
A decisão do Deutsche Bank foi anunciada duas semanas depois da realização do Belt and Road Forum, em Pequim, sobre as Rotas da Seda, convocado por Xi Jinping e prestigiado por 29 chefes de Estado, inclusive o presidente Vladimir Putin, da Rússia. A América Latina foi representada por dois presidentes, Mauricio Macri, da Argentina, e Michelle Bachelet, do Chile. O Brasil enviou só seu secretário da Presidência da República.
O pouco caso brasileiro para com o projeto chinês, considerado a maior oportunidade de investimentos e negócios internacionais das últimas décadas e de grande significado político e diplomático, ocorre no quarto ano de economia doméstica estagnada, sem que o governo consiga colocar em pé nem mesmo seu acanhado programa de infraestrutura.
Lançada em 2013, a iniciativa adota o mesmo nome da estrada construída entre 206 a.C. e 220 d.C., durante a dinastia Han, e tem potencial para ser a maior plataforma mundial de colaboração regional, segundo Kevin Sneader, presidente da consultoria McKinsey na Ásia. Abrange 66 países, com 65% da população do planeta, cerca de um terço do PIB e um quarto de todo o transporte de mercadorias e serviços.
Só no ano passado, os projetos e negócios realizados geraram 494 bilhões de dólares, contabiliza a consultoria PwC. Números preliminares da McKinsey indicam que os novos empreendimentos anunciados em 2016 somaram 400 bilhões de dólares, valor 2,1% acima do previsto, mas eles podem superar em mais de 10% as projeções, prevê a consultoria.
A PwC estima que a China gastou o equivalente a 3 trilhões de dólares em infraestrutura no ano passado, valor 10% acima de 2015 e 40% superior à média dos últimos cinco anos. Os investimentos fazem parte da estratégia definida por Pequim para enfrentar tanto as dificuldades econômicas internas quanto a Grande Recessão mundial e tem força suficiente para conduzir a uma nova etapa da globalização, avaliam vários economistas.
Marcos Antonio Macedo Cintra, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Eduardo Costa Pinto, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, explicam a estratégia no artigo “China em Transformação: Transição e Estratégias de Desenvolvimento”. Apesar da desaceleração, dizem, a economia chinesa permanece uma das mais dinâmicas do mundo e continua a criar entre 12 milhões e 13 milhões de postos de trabalho urbanos ao ano.
Com o aumento da taxa de investimento, de 40% do PIB para 47%, entretanto, o crescimento ficou desequilibrado, pois gera capacidade ociosa em inúmeros setores produtivos e passa a depender da construção de obras gigantescas, da expansão do mercado imobiliário, do endividamento das províncias e dos governos locais, bem como da elevada alavancagem de alguns segmentos dos setores bancário e não bancário.
Busca-se, assim, um novo regime de crescimento sustentável, ancorado em um dinamismo menos intensivo em capital e em energia, e ainda um novo contrato social (um Estado de Bem-Estar Social com características chinesas) para a redução das desigualdades sociais e regionais e a implementação de maior cobertura no sistema de saúde pública e de previdência, sublinham os economistas.
A provisão de bens públicos universais, o desenvolvimento de uma urbanização e uma industrialização com menor impacto sobre o meio ambiente, a ampliação da renda e do consumo da população são os pilares do planejamento estratégico que visa reformar o regime de crescimento nos próximos anos.
“Esse caminho de desenvolvimento, ainda em construção, pressupõe um processo de aprendizado contínuo com avanços e recuos. Articula uma estratégia nacional, inserida regional e globalmente, que visa tornar a China um país moderno, rico e poderoso. As políticas macroeconômica, industrial, de ciência e tecnologia, externa e de segurança são direcionadas pelo Estado para a construção de uma estabilidade política, a melhora das condições de vida do povo chinês e a reconquista de uma posição internacional autônoma.”
Os megaprojetos internacionais de infraestrutura são, conforme destacado acima, um dos eixos da transição interna e, ao mesmo tempo, da redefinição das relações com o restante do mundo, por desencadearem um processo de reconfiguração da ordem global. Não se trata, entretanto, de uma opção tirada da cartola, como provavelmente imaginam aqueles analistas incansáveis na elaboração reiterada de previsões furadas de derrocada do país asiático por insubmissão ao livre-mercado.
“A construção de infraestrutura para fomentar o comércio e a estabilidade social foi uma pedra fundamental da própria prosperidade de longo prazo da China durante mais de 2 mil anos. A política recentemente enunciada baseia-se na história de antigas redes de comércio e transmissão de cultura entre esse país, a Ásia Central e o Sudeste Asiático. A Europa está no longínquo terminal Oeste dessas redes”, explica o economista Peter Nolan, professor da Universidade de Cambrige e consultor do governo chinês, no livro Understanding China: The Silk Road and the Communist Manifesto.
O governo não abre mão da estratégia político-econômica nem da sua permanente revisão e reformulação, em sintonia com a dinâmica da realidade. A planificação estratégica visa à harmonia, ou seja, o equilíbrio de forças, destacam Cintra e Pinto. Nesse sentido, os interesses privados ou capitalistas não devem ser poderosos o suficiente para ameaçar a supremacia incontestável do Estado, que mantém amplo conjunto de empresas e bancos públicos e regula rigorosamente diversas esferas econômicas e as relações com o exterior.
“Os mecanismos de mercado – a taxa de juros, a taxa de câmbio, a tributação, os preços – são considerados um instrumento e não um fim em si mesmos e a abertura assume a condição de eficácia que conduz a uma diretriz operacional, qual seja, alcançar e ultrapassar os concorrentes estrangeiros”, esclarecem os autores do artigo.
As adequações da estratégia ocorrem por meio de reformas, que consistem em mudanças feitas de modo integrado, como detalham os economistas Michel Aglietta e Guo Bai, no livro China’s Development: Capitalism and Empire: “A reforma é a transformação conjunta de estruturas e instituições econômicas. É pluralista e alimenta-se das contradições que gera, em um processo interminável. Não tem qualquer referência em relação a qualquer modelo ideal.
O seu significado não é teleológico; é imanente à prática histórica. Graças à continuidade da liderança política, a reforma pode ser gradual, informada por uma visão de longo prazo e testada no experimento pragmático. O planejamento estratégico visa à harmonia, que é o equilíbrio de forças que contribui para reforçar a soberania do Estado. Consequentemente, interesses capitalistas nunca serão tão poderosos a ponto de ameaçar a supremacia primordial do Estado. É por isso que o Estado mantém um grande domínio de propriedade soberana e regula firmemente as finanças”.
O avanço chinês foi muito além das elucubrações ocidentais. Transcorrido um quarto de século desde as reformas iniciadas entre 1989 e 1990, chama atenção Nolan, o cenário parece muito diferente daquele amplamente previsto e desejado no Ocidente. “O colapso do ‘Império do Mal’ na União Soviética não foi seguido pelo colapso do regime do Partido Comunista na China.
A ‘mudança de regime’, que muitas pessoas ainda esperam e trabalham para acontecer, não ocorreu. O PCC tem 87 milhões de integrantes e em 2021 celebrará o centenário da sua fundação. Sob seu comando o país experimenta a era mais notável de crescimento e desenvolvimento da história moderna. Sob o guarda-chuva protetor da estabilidade política e social, conquistou três décadas de crescimento em alta velocidade.”
Com o controle absoluto sobre o sistema político, o Partido Comunista Chinês restaurou a legitimidade anteriormente personificada no imperador, acrescentam Cintra e Pinto. Ele prolongou e radicalizou uma tradição milenar ao criar uma espécie de “dinastia mandarim”, que segue governando a China segundo os mesmos preceitos morais confucianos do período imperial.