Dezenas de pessoas já foram presas pela Operação Lava Jato, mas nesta quarta-feira aconteceu algo inédito: um senador no exercício de seu mandato, o líder do governo na Casa, Delcídio Amaral (PT-MS), foi detido preventivamente sob a acusação de tentar atrapalhar as investigações contra ele.
Mas, com tantas suspeitas e acusações que recaem sobre congressistas – algumas dezenas deles estão sendo investigados na Lava Jato – por que a prisão de um parlamentar é algo tão raro?
Isso ocorre porque há uma série de normas previstas na Constituição Federal que dão proteção extra aos congressistas teoricamente com o objetivo de preservar sua autonomia durante o exercício do mandato para o qual foram eleitos democraticamente. A legitimidade dessas regras, porém, não é consenso entre juristas.
O artigo 53 da Constituição, por exemplo, prevê que um parlamentar só pode ser preso se for pego em flagrante cometendo crime inafiançável – ou seja, para o qual não está prevista a possibilidade de pagamento de fiança para obter a liberdade.
Além disso, esse artigo estabelece também que a decisão da prisão deverá ser submetida rapidamente ao plenário da respectiva Casa do parlamentar preso, ou seja, o Senado ou a Câmara dos Deputados.
Foro privilegiado
Outra norma constitucional que tem o objetivo de preservar parlamentares é o foro privilegiado. Segundo essa regra, o congressista só pode ser investigado e preso após autorização do Supremo Tribunal Federal.
Isso impede, por exemplo, que o juiz federal Sergio Moro, responsável pelas prisões da Lava Jato na primeira instância, decida sobre os parlamentares citados no caso.
Ele já condenou dois ex-deputados, André Vargas (ex-PT) e Luiz Argolo (ex-SDD), mas isso só ocorreu porque eles haviam perdido seus mandatos.
“Não é uma proteção, um privilégio, digamos, ao congressista”, entende o advogado e jurista Ives Gandra. “É a garantia de que as instituições não vão correr risco na medida em que pessoas com muita experiência, no topo da magistratura, é que vão examinar a pertinência ou não de uma prisão. Essa é a razão pela qual a Constituição prevê que os parlamentares só podem ser presos nessas circunstâncias (específicas)”, acrescenta.
Segundo o criminalista Alberto Zacharias Toron, garantias como essas estão presentes nos parlamentos de todos os países para evitar prisões arbitrárias de congressistas.
“Muita gente questiona a validade dessas regras num país em que os tribunais funcionam com independência. Mas, apesar de haver esse questionamento, até hoje prevalece o entendimento de que os congressistas devem ter essa proteção para poder atuar com independência e não serem alvos fáceis de regimes autoritários que possam colocar a polícia no encalço do parlamentar”, destacou.
Casta
A procuradora regional da República e professora da FGV-Rio Silvana Batini tem visão diferente. Na sua opinião, o foro privilegiado compromete a eficiência do combate à corrupção no país.
“Nós temos um sistema de foro privilegiado muito, muito amplo, maior que qualquer outro país no mundo. Precisamos repensar a questão do foro privilegiado, sim. Eu acho que ele cria uma casta. É uma situação que não se justifica na evolução democrática que nós temos hoje no Brasil”, afirma.
Ela observa que, quando a Constituição foi escrita, em 1988, o país havia acabado de sair de um regime autoritário, a Ditadura Militar (1964-1985) e, por isso, havia uma preocupação grande em proteger a liberdade do parlamentar.
“Foram regras criadas numa reação ao período antidemocrático, para blindar o parlamentar contra as investidas de um poder autoritário”, lembra.
“Hoje o jogo democrático é completamente diferente. O risco de um parlamentar criminoso continuar praticando crimes no Brasil de hoje é maior que o risco autoritário de um Poder querer cooptar o outro como numa ditadura. Aquela regra foi concebida dentro de uma visão de homens republicanos honestos, mas a realidade é outra”, argumenta.
Crime continuado
Para solicitar a prisão de Delcídio ao STF, a Procuradoria-Geral da República argumentou que havia uma ação criminosa continuada do senador no sentido de obstruir as investigações da Lava Jato.
A principal prova apresentada foi a gravação de um diálogo entre Delcídio e Bernardo Cerveró, filho de Nestor Cerveró, ex-diretor da Petrobras preso pela Lava Jato.
Na conversa, gravada pelo próprio Bernardo, o senador tentava convencer o ex-diretor da estatal a não fechar acordo de delação premiada – mecanismo pelo qual o acusado concorda em ajudar os investigadores em troca de penas mais brandas.
Para tentar convencê-lo disso, Delcídio ofereceu apoio para uma fuga de avião, pelo Paraguai, rumo a Madri, na Espanha. Além disso, oferecia uma "mesada" de R$ 50 mil e disse que influenciaria ministros do STF para que colocassem Cerveró em liberdade.
O ministro Teori Zavascki aceitou o argumento da Procuradoria e decretou na noite da terça a prisão de Delcídio e outras três pessoas, entre elas o banqueiro André Esteves, dono do BTG Pactual. A decisão de Zavascki foi referendada por unanimidade na manhã de quarta pela segunda turma do STF, que inclui também os ministros Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli.
Para a professora da FGV Silvana Batini, o Supremo fez uma leitura atualizada da Constituição Federal, o que permitiu decretar a prisão do senador nesse caso.
“A regra constitucional literalmente prevê que (o parlamentar) só pode ser preso em flagrante por crime inafiançável. Mas essa regra foi concebida num momento que a imunidade parlamentar era muito mais ampla, quando o parlamentar só podia ser processado após autorização da Câmara ou Senado”, observa.
No entanto, destaca Batini, desde 2001, após uma emenda à Constituição ser aprovada no Congresso, parlamentares podem ser processados pelo STF independentemente de autorização da Casa legislativa.
“Então, a tese do procurador-geral da República, que foi acolhida pelo Supremo, é que aquele dispositivo que restringia a prisão do parlamentar à prisão em flagrante tinha que ter uma interpretação condizente com o atual sistema”, diz a professora.
Já o criminalista Alberto Toron não concorda que os atos praticados por Delcídio possam ser caracterizados como flagrante.
“No meu modo de ver, não existe flagrante algum. O fato de ele lá atrás, em conversa, ter dito isso ou aquilo poderia dar ensejo a uma prisão preventiva se fosse um cidadão comum, mas não é uma hipótese de flagrante. Isso ocorreu no passado, não existe no presente”, diz.
Palavra final do Senado
Caberá aos senadores votarem e decidirem em breve se a prisão de Delcídio deve ser mantida ou não. Caso os senadores decidam soltá-lo, não há nada que o STF possa fazer imediatamente, dizem os analistas ouvidos pela BBC Brasil. No entanto, isso não impede que o senador responda a um processo em liberdade e, caso condenado, volte à prisão, nesse caso sem a possibilidade de ser solto por seus pares.
A gravação que revelou a conversa de Delcídio com o filho de Cerveró, porém, dificulta uma decisão favorável ao senador, acreditam os juristas.
“Teoricamente o Senado poderia (soltar Delcídio), a impressão que tenho é que não o fará. Se fizer, cria uma crise entre Poderes, porque, para o Supremo declarar isso, as provas devem ser inequívocas”, diz Gandra.
“É possível que o Senado derrube a decisão", opina Batini. "Mas quem ler o pedido do procurador-geral e a decisão do STF dificilmente vai poder se afastar da necessidade daquela prisão. Por muito menos se prende cautelarmente no Brasil”.
Segundo a professora, "a gente não pode esquecer que há outros senadores envolvidos também na Operação Lava Jato e que isso pode significar um peso para eles também. É uma situação muito delicada”.
Ainda assim, para a professora da FGV, a “força dos fatos” torna “absolutamente constrangedor” ao Senado liberar o petista.
“Acho que a opinião pública também está muito atenta a isso”, destaca.